Pisaremos em um terreno pertencente ao reino mainstream, e hoje vamos falar sobre uma
titã da televisão norte-americana: a produtora, roteirista, executiva e mãe,
Shonda Rhimes.
Negra e oriunda de Chicago, Shonda é uma mulher incisiva que
iniciou sua carreira promissora trabalhando no blockbuster “O Diário da Princesa” e que acabou se tornando a
primeira mulher negra a produzir uma das 10 séries mais populares nos Estados
Unidos. Bacharel em Literatura Inglesa, Rhimes viu a oportunidade de levar sua
mente brilhante para a rede de televisão norte-americana ABC em 2004 e iniciou
a produção de Grey’s Anatomy, série de sucesso atualmente na sua décima
primeira temporada. Usando seu espaço para discutir questões sérias e atuais,
como a homossexualidade, a transexualidade, as questões raciais e especialmente
o papel da mulher em diversas áreas, ela atingiu um público imenso e representava
pela primeira vez um público negligenciado aos expectadores do horário nobre.
Entre quedas de aviões e tiroteios, Shonda Rhimes iniciou
ali, com seu drama médico em 2004, uma revolução que marcaria para sempre a
televisão americana. Aos poucos a produtora ganhava mais espaço, até que pôde
produzir outras séries. Depois do sucesso de Private Practice (spin-off de Grey’s
Anatomy, estrelado por Kate Walsh), Shonda deu um passo além, e começou a
produção de Scandal, que se tornou em 2011 um divisor de águas.
Scandal, uma série sobre uma gestora de crises
ex-funcionária da administração Grant baseada na lendária Judy Smith, se tornou
a primeira série transmitida em horário nobre desde 1974 (quando Teresa Graves
protagonizou “Get Christie Love!”) a ter uma protagonista afrodescendente. A
atuação genial de Kerry Washington também a rendeu a indicação ao Emmy de Atriz
Principal, algo que não acontecia a uma mulher negra desde 1995, quando a
veterana Cicely Tyson (também convidada de How To Get Away With Murder, de
Shonda) foi indicada por Sweet Justice.
Com um impacto tão grande, a série foi uma das grandes
cartadas de Shonda e da Shondaland (sua própria companhia) para revolucionar e
mudar o rosto da televisão norte-americana, que agora não era mais tão etnicamente
homogêneo. Com o terreno preparado em 2004 por Grey’s Anatomy - que trazia Sandra Oh e Chandra Wilson, não necessariamente
como protagonistas, mas como complementos humanos, complexos e que
representavam, de certa forma, a diversidade da população estadunidense – e o
impacto de Scandal que trouxe à tona a discussão racial (mais recentemente a
série lidou com o assassinato racista e covarde de um adolescente negro em
Baltimore), era a hora de lançar How To Get Away With Murder, protagonizada
pela indicada ao Oscar, Viola Davis, também negra.
A figura da mulher negra, sempre representada com a velha
“black attitude”, alá Rochelle, agora ganhava as faces de mulheres poderosas e
independentes. Mulheres que não precisavam de homens para existir. Mulheres que,
independente do seu tom de pele ou da sua sexualidade, poderiam dominar o
mundo. Até então isso era inédito, e agradou a população afro-americana que
ansiava por ser representada em situações humanas e reais na televisão.
Atrizes negras de qualidade não são uma exceção, mas até
hoje, só Halle Berry ganhou um Oscar de Melhor Atriz (principal), e só outras
três foram indicadas (Gauborey Sidibe, Viola Davis e Quvenzhane Wallis), e só
duas mulheres negras foram indicadas ao Emmy em toda a história do prêmio. Isso
evidencia ainda mais a necessidade do trabalho inclusivo e quebrador de
barreiras protagonizado pela Shondaland. Trabalho esse que não se restringe
apenas às protagonistas.
Halle Berry ganhou, em 2002, o Oscar de Melhor Atriz por A Última Ceia |
Uma diretora que trabalha recorrentemente com Shonda (em
Scandal, especialmente) é Ava DuVernay, a (primeira mulher negra) ganhadora do
prêmio Sundance de Melhor Diretora. Um de seus comentários mais frequentes é
que Scandal é uma série protagonizada, produzida, dirigida e escrita por
mulheres negras.
Essa parcela da população norte-americana ansiava por
personagens que a representasse dignamente no horário nobre, como defendeu a autora
Joan Morgan (“When Chickenheads Come Home To Roost”, um livro sobre mulheres
negras e o feminismo). Eles não precisam necessariamente em séries “só para
negros”. Segundo ela: “Não é que queiramos séries 'negras', mas precisamos ver
séries onde mulheres negras e outras mulheres possam ser representadas menos
como mulheres ou como negras, mas como quem elas são”.
Representatividade,
sentir que a sua classe, ou a sua história, o seu povo, ou o até mesmo o seu
grupo são bem representados. No caso da Shondaland, essa palavra já faz parte
da fórmula de sucesso para as séries desde que Grey’s Anatomy contratou Sandra
Oh (Christina Yang), Isaiah Washington (Preston Burke), James Pickens Jr
(Richard Webber) e Chandra Wilson (Miranda Bailey) para preencher a lacuna da
diversidade étnica ou fez com que Sara Ramirez (Callie Torres) e Jessica
Capshaw (Arizona Robbins) se apaixonassem e se tornassem um dos casais
homoafetivos mais amados da televisão norte-americana. Também tratou de
diversos personagens homossexuais/transgêneros/transexuais durante suas 11
temporadas para lidar com a representatividade quase falha da comunidade LGBT
que até hoje é pontilhada por estereótipos esdrúxulos destinados eternamente a plots de comédia.
Na questão LGBT, além de tratar dos seus personagens como
principalmente humanos (não só pessoas restritas a sua sexualidade/identidade
de gênero), Shonda os inclui em espaços diversificados. De médicas a soldados
do exército americano (em referências claríssimas a política do Don’t Ask,
Don’t Tell, derrubada em 2011) passando pelo monstruoso chefe do gabinete do
presidente dos Estados Unidos e um estudante de direito e suas práticas não
muito ortodoxas. Mas não é só a Shondaland que tem lutado pelo direito a
humanidade que os personagens LGBTs (não só norte-americanos) são privados.
Orange Is The New Black atua muito bem na humanização de personagens lésbicas e
da transexual Sophia Burset (Laverne Cox), a primeira mulher transexual a fazer
parte desse tipo de série, e uma das 100 mulheres mais influentes segundo a
Forbes (2014).
Sophia Burset, interpretada por Laverne Cox |
A revolução televisiva que Shonda Rhimes - a “mulher negra
irada” que cria personagens problemáticas, segundo o conservador NY Times –
iniciou em 2004 parece cruzar o atlântico aos poucos e atinge a Europa, mas
parece incapaz de atravessar a estreita América Central e chegar a terras
tupiniquins, que parecem retroceder dia após dia e que só permitiram que uma
mulher negra fosse protagonista de alguma novela em horário nobre no recente
ano de 2009, com a excelente Thais Araújo. Apesar de tudo, a força de mulheres
como Shonda Rhimes força cada vez mais a sociedade a aceitar e incluir aqueles
que ela já se acostumou a excluir com personagens como Olivia Pope, que segura
a república norte-americana em suas mãos.
Thais Araujo interpretou Helena, primeira protagonista negra de uma novela da Globo no horário nobre, na novela Viver a Vida |
Dada a largada, resta a Viola Davis, Kerry Washington,
Laverne Cox, Ava DuVernay, a própria Shonda e todas(os/x) aqueles que “procuram
seu lugar ao sol” continuarem a lutar e empurrar a visão eurocentrista e
começarem a ser vistos não como “A NEGRA”, “O GAY”, “A TRANS”, mas como
pessoas, que independente das suas identidades de gênero ou da sua sexualidade,
ainda são pessoas e tem histórias a serem contadas, mentes para serem
desenvolvidas e corações a serem tocados.
Vida longa a Shonda Rhimes! E que Meredith Grey não encontre
mais alguma filha de Ellis Grey por aí.
Sobre o autor:
Thor Oliveira. Futuro relações públicas, terror dos novinhos, taurino atípico, amante de séries/drags. Sem paciência para quem está começando. Uma mistura insuportável de Fran Drescher com Jinkx Monsoon que jura que vai mudar o mundo, mas vai sim.
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