sexta-feira, 29 de maio de 2015

Guest Post: A revolução negra e feminina da televisão norte-americana de Shonda Rhimes


Pisaremos em um terreno pertencente ao reino mainstream, e hoje vamos falar sobre uma titã da televisão norte-americana: a produtora, roteirista, executiva e mãe, Shonda Rhimes.

Negra e oriunda de Chicago, Shonda é uma mulher incisiva que iniciou sua carreira promissora trabalhando no blockbuster “O Diário da Princesa” e que acabou se tornando a primeira mulher negra a produzir uma das 10 séries mais populares nos Estados Unidos. Bacharel em Literatura Inglesa, Rhimes viu a oportunidade de levar sua mente brilhante para a rede de televisão norte-americana ABC em 2004 e iniciou a produção de Grey’s Anatomy, série de sucesso atualmente na sua décima primeira temporada. Usando seu espaço para discutir questões sérias e atuais, como a homossexualidade, a transexualidade, as questões raciais e especialmente o papel da mulher em diversas áreas, ela atingiu um público imenso e representava pela primeira vez um público negligenciado aos expectadores do horário nobre.


Entre quedas de aviões e tiroteios, Shonda Rhimes iniciou ali, com seu drama médico em 2004, uma revolução que marcaria para sempre a televisão americana. Aos poucos a produtora ganhava mais espaço, até que pôde produzir outras séries. Depois do sucesso de Private Practice (spin-off de Grey’s Anatomy, estrelado por Kate Walsh), Shonda deu um passo além, e começou a produção de Scandal, que se tornou em 2011 um divisor de águas.


Scandal, uma série sobre uma gestora de crises ex-funcionária da administração Grant baseada na lendária Judy Smith, se tornou a primeira série transmitida em horário nobre desde 1974 (quando Teresa Graves protagonizou “Get Christie Love!”) a ter uma protagonista afrodescendente. A atuação genial de Kerry Washington também a rendeu a indicação ao Emmy de Atriz Principal, algo que não acontecia a uma mulher negra desde 1995, quando a veterana Cicely Tyson (também convidada de How To Get Away With Murder, de Shonda) foi indicada por Sweet Justice.

Com um impacto tão grande, a série foi uma das grandes cartadas de Shonda e da Shondaland (sua própria companhia) para revolucionar e mudar o rosto da televisão norte-americana, que agora não era mais tão etnicamente homogêneo. Com o terreno preparado em 2004 por Grey’s Anatomy  - que trazia Sandra Oh e Chandra Wilson, não necessariamente como protagonistas, mas como complementos humanos, complexos e que representavam, de certa forma, a diversidade da população estadunidense – e o impacto de Scandal que trouxe à tona a discussão racial (mais recentemente a série lidou com o assassinato racista e covarde de um adolescente negro em Baltimore), era a hora de lançar How To Get Away With Murder, protagonizada pela indicada ao Oscar, Viola Davis, também negra.


A figura da mulher negra, sempre representada com a velha “black attitude”, alá Rochelle, agora ganhava as faces de mulheres poderosas e independentes. Mulheres que não precisavam de homens para existir. Mulheres que, independente do seu tom de pele ou da sua sexualidade, poderiam dominar o mundo. Até então isso era inédito, e agradou a população afro-americana que ansiava por ser representada em situações humanas e reais na televisão.

Atrizes negras de qualidade não são uma exceção, mas até hoje, só Halle Berry ganhou um Oscar de Melhor Atriz (principal), e só outras três foram indicadas (Gauborey Sidibe, Viola Davis e Quvenzhane Wallis), e só duas mulheres negras foram indicadas ao Emmy em toda a história do prêmio. Isso evidencia ainda mais a necessidade do trabalho inclusivo e quebrador de barreiras protagonizado pela Shondaland. Trabalho esse que não se restringe apenas às protagonistas.

Halle Berry ganhou, em 2002, o Oscar de Melhor Atriz por A Última Ceia

Uma diretora que trabalha recorrentemente com Shonda (em Scandal, especialmente) é Ava DuVernay, a (primeira mulher negra) ganhadora do prêmio Sundance de Melhor Diretora. Um de seus comentários mais frequentes é que Scandal é uma série protagonizada, produzida, dirigida e escrita por mulheres negras.

Essa parcela da população norte-americana ansiava por personagens que a representasse dignamente no horário nobre, como defendeu a autora Joan Morgan (“When Chickenheads Come Home To Roost”, um livro sobre mulheres negras e o feminismo). Eles não precisam necessariamente em séries “só para negros”. Segundo ela: “Não é que queiramos séries 'negras', mas precisamos ver séries onde mulheres negras e outras mulheres possam ser representadas menos como mulheres ou como negras, mas como quem elas são”.

Representatividade, sentir que a sua classe, ou a sua história, o seu povo, ou o até mesmo o seu grupo são bem representados. No caso da Shondaland, essa palavra já faz parte da fórmula de sucesso para as séries desde que Grey’s Anatomy contratou Sandra Oh (Christina Yang), Isaiah Washington (Preston Burke), James Pickens Jr (Richard Webber) e Chandra Wilson (Miranda Bailey) para preencher a lacuna da diversidade étnica ou fez com que Sara Ramirez (Callie Torres) e Jessica Capshaw (Arizona Robbins) se apaixonassem e se tornassem um dos casais homoafetivos mais amados da televisão norte-americana. Também tratou de diversos personagens homossexuais/transgêneros/transexuais durante suas 11 temporadas para lidar com a representatividade quase falha da comunidade LGBT que até hoje é pontilhada por estereótipos esdrúxulos destinados eternamente a plots de comédia.

Na questão LGBT, além de tratar dos seus personagens como principalmente humanos (não só pessoas restritas a sua sexualidade/identidade de gênero), Shonda os inclui em espaços diversificados. De médicas a soldados do exército americano (em referências claríssimas a política do Don’t Ask, Don’t Tell, derrubada em 2011) passando pelo monstruoso chefe do gabinete do presidente dos Estados Unidos e um estudante de direito e suas práticas não muito ortodoxas. Mas não é só a Shondaland que tem lutado pelo direito a humanidade que os personagens LGBTs (não só norte-americanos) são privados. Orange Is The New Black atua muito bem na humanização de personagens lésbicas e da transexual Sophia Burset (Laverne Cox), a primeira mulher transexual a fazer parte desse tipo de série, e uma das 100 mulheres mais influentes segundo a Forbes (2014).

Sophia Burset, interpretada por Laverne Cox

A revolução televisiva que Shonda Rhimes - a “mulher negra irada” que cria personagens problemáticas, segundo o conservador NY Times – iniciou em 2004 parece cruzar o atlântico aos poucos e atinge a Europa, mas parece incapaz de atravessar a estreita América Central e chegar a terras tupiniquins, que parecem retroceder dia após dia e que só permitiram que uma mulher negra fosse protagonista de alguma novela em horário nobre no recente ano de 2009, com a excelente Thais Araújo. Apesar de tudo, a força de mulheres como Shonda Rhimes força cada vez mais a sociedade a aceitar e incluir aqueles que ela já se acostumou a excluir com personagens como Olivia Pope, que segura a república norte-americana em suas mãos.

Thais Araujo interpretou Helena, primeira protagonista negra de uma novela da Globo no horário nobre, na novela Viver a Vida

Dada a largada, resta a Viola Davis, Kerry Washington, Laverne Cox, Ava DuVernay, a própria Shonda e todas(os/x) aqueles que “procuram seu lugar ao sol” continuarem a lutar e empurrar a visão eurocentrista e começarem a ser vistos não como “A NEGRA”, “O GAY”, “A TRANS”, mas como pessoas, que independente das suas identidades de gênero ou da sua sexualidade, ainda são pessoas e tem histórias a serem contadas, mentes para serem desenvolvidas e corações a serem tocados.

Vida longa a Shonda Rhimes! E que Meredith Grey não encontre mais alguma filha de Ellis Grey por aí.




Sobre o autor:
Thor Oliveira. Futuro relações públicas, terror dos novinhos, taurino atípico, amante de séries/drags. Sem paciência para quem está começando. Uma mistura insuportável de Fran Drescher com Jinkx Monsoon que jura que vai mudar o mundo, mas vai sim.

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