sexta-feira, 29 de maio de 2015

Guest Post: A revolução negra e feminina da televisão norte-americana de Shonda Rhimes


Pisaremos em um terreno pertencente ao reino mainstream, e hoje vamos falar sobre uma titã da televisão norte-americana: a produtora, roteirista, executiva e mãe, Shonda Rhimes.

Negra e oriunda de Chicago, Shonda é uma mulher incisiva que iniciou sua carreira promissora trabalhando no blockbuster “O Diário da Princesa” e que acabou se tornando a primeira mulher negra a produzir uma das 10 séries mais populares nos Estados Unidos. Bacharel em Literatura Inglesa, Rhimes viu a oportunidade de levar sua mente brilhante para a rede de televisão norte-americana ABC em 2004 e iniciou a produção de Grey’s Anatomy, série de sucesso atualmente na sua décima primeira temporada. Usando seu espaço para discutir questões sérias e atuais, como a homossexualidade, a transexualidade, as questões raciais e especialmente o papel da mulher em diversas áreas, ela atingiu um público imenso e representava pela primeira vez um público negligenciado aos expectadores do horário nobre.


Entre quedas de aviões e tiroteios, Shonda Rhimes iniciou ali, com seu drama médico em 2004, uma revolução que marcaria para sempre a televisão americana. Aos poucos a produtora ganhava mais espaço, até que pôde produzir outras séries. Depois do sucesso de Private Practice (spin-off de Grey’s Anatomy, estrelado por Kate Walsh), Shonda deu um passo além, e começou a produção de Scandal, que se tornou em 2011 um divisor de águas.


Scandal, uma série sobre uma gestora de crises ex-funcionária da administração Grant baseada na lendária Judy Smith, se tornou a primeira série transmitida em horário nobre desde 1974 (quando Teresa Graves protagonizou “Get Christie Love!”) a ter uma protagonista afrodescendente. A atuação genial de Kerry Washington também a rendeu a indicação ao Emmy de Atriz Principal, algo que não acontecia a uma mulher negra desde 1995, quando a veterana Cicely Tyson (também convidada de How To Get Away With Murder, de Shonda) foi indicada por Sweet Justice.

Com um impacto tão grande, a série foi uma das grandes cartadas de Shonda e da Shondaland (sua própria companhia) para revolucionar e mudar o rosto da televisão norte-americana, que agora não era mais tão etnicamente homogêneo. Com o terreno preparado em 2004 por Grey’s Anatomy  - que trazia Sandra Oh e Chandra Wilson, não necessariamente como protagonistas, mas como complementos humanos, complexos e que representavam, de certa forma, a diversidade da população estadunidense – e o impacto de Scandal que trouxe à tona a discussão racial (mais recentemente a série lidou com o assassinato racista e covarde de um adolescente negro em Baltimore), era a hora de lançar How To Get Away With Murder, protagonizada pela indicada ao Oscar, Viola Davis, também negra.


A figura da mulher negra, sempre representada com a velha “black attitude”, alá Rochelle, agora ganhava as faces de mulheres poderosas e independentes. Mulheres que não precisavam de homens para existir. Mulheres que, independente do seu tom de pele ou da sua sexualidade, poderiam dominar o mundo. Até então isso era inédito, e agradou a população afro-americana que ansiava por ser representada em situações humanas e reais na televisão.

Atrizes negras de qualidade não são uma exceção, mas até hoje, só Halle Berry ganhou um Oscar de Melhor Atriz (principal), e só outras três foram indicadas (Gauborey Sidibe, Viola Davis e Quvenzhane Wallis), e só duas mulheres negras foram indicadas ao Emmy em toda a história do prêmio. Isso evidencia ainda mais a necessidade do trabalho inclusivo e quebrador de barreiras protagonizado pela Shondaland. Trabalho esse que não se restringe apenas às protagonistas.

Halle Berry ganhou, em 2002, o Oscar de Melhor Atriz por A Última Ceia

Uma diretora que trabalha recorrentemente com Shonda (em Scandal, especialmente) é Ava DuVernay, a (primeira mulher negra) ganhadora do prêmio Sundance de Melhor Diretora. Um de seus comentários mais frequentes é que Scandal é uma série protagonizada, produzida, dirigida e escrita por mulheres negras.

Essa parcela da população norte-americana ansiava por personagens que a representasse dignamente no horário nobre, como defendeu a autora Joan Morgan (“When Chickenheads Come Home To Roost”, um livro sobre mulheres negras e o feminismo). Eles não precisam necessariamente em séries “só para negros”. Segundo ela: “Não é que queiramos séries 'negras', mas precisamos ver séries onde mulheres negras e outras mulheres possam ser representadas menos como mulheres ou como negras, mas como quem elas são”.

Representatividade, sentir que a sua classe, ou a sua história, o seu povo, ou o até mesmo o seu grupo são bem representados. No caso da Shondaland, essa palavra já faz parte da fórmula de sucesso para as séries desde que Grey’s Anatomy contratou Sandra Oh (Christina Yang), Isaiah Washington (Preston Burke), James Pickens Jr (Richard Webber) e Chandra Wilson (Miranda Bailey) para preencher a lacuna da diversidade étnica ou fez com que Sara Ramirez (Callie Torres) e Jessica Capshaw (Arizona Robbins) se apaixonassem e se tornassem um dos casais homoafetivos mais amados da televisão norte-americana. Também tratou de diversos personagens homossexuais/transgêneros/transexuais durante suas 11 temporadas para lidar com a representatividade quase falha da comunidade LGBT que até hoje é pontilhada por estereótipos esdrúxulos destinados eternamente a plots de comédia.

Na questão LGBT, além de tratar dos seus personagens como principalmente humanos (não só pessoas restritas a sua sexualidade/identidade de gênero), Shonda os inclui em espaços diversificados. De médicas a soldados do exército americano (em referências claríssimas a política do Don’t Ask, Don’t Tell, derrubada em 2011) passando pelo monstruoso chefe do gabinete do presidente dos Estados Unidos e um estudante de direito e suas práticas não muito ortodoxas. Mas não é só a Shondaland que tem lutado pelo direito a humanidade que os personagens LGBTs (não só norte-americanos) são privados. Orange Is The New Black atua muito bem na humanização de personagens lésbicas e da transexual Sophia Burset (Laverne Cox), a primeira mulher transexual a fazer parte desse tipo de série, e uma das 100 mulheres mais influentes segundo a Forbes (2014).

Sophia Burset, interpretada por Laverne Cox

A revolução televisiva que Shonda Rhimes - a “mulher negra irada” que cria personagens problemáticas, segundo o conservador NY Times – iniciou em 2004 parece cruzar o atlântico aos poucos e atinge a Europa, mas parece incapaz de atravessar a estreita América Central e chegar a terras tupiniquins, que parecem retroceder dia após dia e que só permitiram que uma mulher negra fosse protagonista de alguma novela em horário nobre no recente ano de 2009, com a excelente Thais Araújo. Apesar de tudo, a força de mulheres como Shonda Rhimes força cada vez mais a sociedade a aceitar e incluir aqueles que ela já se acostumou a excluir com personagens como Olivia Pope, que segura a república norte-americana em suas mãos.

Thais Araujo interpretou Helena, primeira protagonista negra de uma novela da Globo no horário nobre, na novela Viver a Vida

Dada a largada, resta a Viola Davis, Kerry Washington, Laverne Cox, Ava DuVernay, a própria Shonda e todas(os/x) aqueles que “procuram seu lugar ao sol” continuarem a lutar e empurrar a visão eurocentrista e começarem a ser vistos não como “A NEGRA”, “O GAY”, “A TRANS”, mas como pessoas, que independente das suas identidades de gênero ou da sua sexualidade, ainda são pessoas e tem histórias a serem contadas, mentes para serem desenvolvidas e corações a serem tocados.

Vida longa a Shonda Rhimes! E que Meredith Grey não encontre mais alguma filha de Ellis Grey por aí.




Sobre o autor:
Thor Oliveira. Futuro relações públicas, terror dos novinhos, taurino atípico, amante de séries/drags. Sem paciência para quem está começando. Uma mistura insuportável de Fran Drescher com Jinkx Monsoon que jura que vai mudar o mundo, mas vai sim.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

8 personagens femininas que eu curto

A representação ficcional das mulheres ainda tem que melhorar muito. Mas felizmente sempre aparecem algumas personagens femininas maravilhosas para quebrar estereótipo ou mostrar que mulheres são seres humanos e não simples objetos decorativos. Decidi listar algumas personagens que eu curto e considero maravilhosas de alguma forma. Vamos lá.

Virgínia foi interpretada por Tammy di Calafiori na adaptação (ruim) de 2006 de Ciranda de pedra

1) Virgínia
Ciranda de pedra, escrito por Lygia Fagundes Telles (amo/sou), é meu livro favorito do momento. Virgínia é a protagonista desse livro que a acompanha desde a infância até a idade adulta. Em diversas passagens, Virgínia me representa muito. As incertezas de crescer, a dificuldade de encontrar um espaço na ciranda, a paixonite platônica, a sensação de mudar e continuar sendo a mesma.

O que eu gosto em Virgínia é a maneira como ela é humana. Há momentos que o leitor sente pena e simpatia por ela. Em outros, pensa "que ser humano horrível". Não somos todos assim? Algumas vezes bons, outras não.

É uma personagem sem maniqueísmo, nem boa nem ruim, apenas tentando sobreviver a esse caos chamado vida. Se em um momento sobreviver significa manipular, ela vai manipular. E nós descobrimos ao longo do livro que até o mais santo dos personagens faz a mesma coisa, porque somos todos humanos.

(A partir daqui, spoilers!)
Depois de fazer umas merdas, Virgínia percebe que não precisa de um lugar naquela ciranda e se encontra. Percebe também que não precisa do amor de Conrado, sua paixonite de toda vida, para ser completa. A conclusão dela é a de que só precisa de si mesma. Como não amar um livro que a protagonista conclui isso?

Não significa que no final ela resolve todos seus problemas. Afinal, viver é lidar com nossas próprias questões. Ela parte para ter novas perguntas para se responder uma vez que encontrara as respostas sobre a ciranda.

Vou deixar aqui minha passagem favorita (sem spoilers):

"Chegara a pensar que Otávia estava certa, devia ser fácil desfazer-se também das sucessivas Virgínias nas quais se desdobrara desde a infância, desfazer-se da menininha, principalmente da menininha de unhas roídas, andando na ponta dos pés. Agarrar-se só ao presente, nua de lembranças como se acabasse de nascer. Via agora que jamais poderia se libertar das suas antigas faces, impossível negá-las porque tinha qualquer coisa de comum que permanecia no fundo de cada uma delas, qualquer coisas que era como uma misteriosa unidade ligando umas às outras, sucessivamente, até chegar à face atual".







2) Makoto Kino (Sailor Júpiter)
Sailor Moon como um todo é ouro puro. Tem (muita) sororidade e meninas salvando o mundo. Mas vou focar em uma personagem

Makoto Kino, chamada na versão brasileira de Lita, é minha sailor favorita. Ela é mais alta do que a maioria das meninas da sua idade, curte cozinhar e tem mil paixonites platônicas (incluindo Haruka) ao longo da história. Agora pensa na mini Lídia que era mais alta até que os garotos da sala, achava cozinhar mó legal e, super romântica, tinha mil paixonites platônicas na escola vendo essa personagem. Foi puro amor.


Além disso, Makoto é muito boa em esportes e sabe lutar caratê. O legal dessa personagem é isso: ela curte coisas domésticas como cozinhar e cuidar de uma casa, mas também ama esportes e lutar. Uma menina pode gostar das duas coisas, nada é excludente. Sem falar que ela com certeza é a sailor que mais entendeu o significado de sororidade.







3) Matilda
Quem nunca viu Matilda na Sessão da Tarde que atire a primeira pedra. Se você é do grupo que pode atirar a pedra, sai agora desse blog e vai assistir. Ainda dá tempo de salvar sua infância.

Matilda é essa garotinha fofa que adora ler e descobre ter um super poder: mover as coisas com o pensamento.



Ela tem uma família doida e estuda em uma escola com uma diretora mais doida ainda. Entretanto, tem a professora legal que a ajuda e que deixou uma mensagem para várias crianças com famílias problemáticas:

"Você nasceu em uma família que nem sempre curte você. Mas um dia, as coisas serão diferentes"

Matilda encontra conforto nos livros e foi uma personagem que me inspirou a ler cada vez mais.

"Esses livros deram a Matilda uma esperançosa e reconfortante mensagem: você não está sozinha"

Também gastei um tempo considerável de infância na frente de uma colher tentando fazer com que ela se mexesse pelo poder da mente.


Um filme para crianças sobre lidar com família problemática e a importância da leitura. Como não amar?

(Sério, quem não assistiu pode ir agora)






4) Katie
Quem nunca fez uma merda que gostaria de poder consertar? Katie, a protagonista da HQ Seconds, tem essa oportunidade após encontrar cogumelos mágicos em sua casa. Ela apenas precisa escrever o que gostaria de mudar, comer um cogumelo e ir dormir. No dia seguinte, está tudo mudado.

Entretanto, na tentativa de consertar seus erros, ela acaba piorando a situação. E cada vez que a situação piora, ela tenta consertar de novo com os cogumelos e piora mais ainda, formando uma enorme bola de neve. Mas o uso dos cogumelos tem consequências sérias que não vou contar quais são.

Katie de certa forma representa todas nós naquele momento no qual fazemos uma burrada tão grande que acabamos no chão do quarto olhando pro teto e pensando "Aff fui trouxa".





5) Cosima
Eu estou irremediavelmente viciada em Orphan Black e até pretendo escrever sobre a série depois.

Minha clone favorita é Cosima. Ela é uma cientista super inteligente. Em uma sociedade como a nossa em que as mulheres são desencorajadas a seguir carreiras científicas e enfrentam muito preconceito quando decidem seguir por essa área, é um bálsamo ver uma personagem cientista manjadora. 

Ela também quebra vários estereótipos e tem algumas das melhores falas.

Tipo quando querem implantar células-tronco de outra personagem em Cosima para ela ficar curada, mas isso ia gerar altas tretas. Cosima bate o pé e fala "É o meu corpo!", o resumo de meu corpo, minhas regras. 

"Esse é o meu laboratório, meu corpo. Eu sou a ciência. Sai daqui!"

Ou quando outra personagem pergunta se ela é gay e ela responde com "Minha sexualidade não é a coisa mais interessante sobre mim", 

"Minha sexualidade não é a coisa mais interessante sobre mim"

Uma dica de vida: assista Orphan Black.






6) Ifemelu
Ifemelu é a protagonista do livro Americanah, da diva Chimamanda Ngozi Adichie. É difícil traçar uma história para esse livro. Acompanhamos Ifemelu em vários momentos de sua vida: a adolescência na Nigéria, os anos nos Estados Unidos e a volta para seu país de origem.

O legal de Ifemelu é o quanto ela é humana. Uma personagem que faz várias merdas como qualquer uma de nós faria. Mesmo quando ela já é uma blogueira famosa, tem uns momentos "não faço ideia do que estou fazendooo". E que coisa mais humana do que ser considerada alguém que manja de um assunto e não se sentir tão manjadora? Ainda assim, ela vai lá, faz várias palestras e samba na cara da hipocrisia racial americana em seu blog.

Outra dica de vida: leia Americanah (escrevi melhor sobre o livro aqui).






7) Mulan
Praticamente todas as princesas Disney marcaram minha infância. Ariel, Bela e Pocahontas sempre terão um lugar especial no coração ainda que haja problemas em suas histórias. Hoje, porém, vou destacar Mulan.

Por que Mulan é diva?

Ela quebra o estereótipo de boa moça que vai arrumar um marido e ser feliz cuidando dele e dos filhos, mostra que pode ser tão boa quanto qualquer soldado homem, tem altas ideias estratégicas (como vestir os amigos de mulher para entrar no palácio ou usar o leque pra desarmar o huno que não lembro o nome) e salva a China.

O filme zoa o ideal de masculinidade também.


Além disso, tem o Mushu.

"Desonra pra tu! Desonra pra tua vaca!"

Mulan é um ótimo exemplo para as meninas de você pode ser incrível e pode não seguir o que os outros esperam de você.





Sally foi interpretada por Liza Minelli na versão cinematográfica de Cabaret

8) Sally Bowles
Uma mulher dona do próprio corpo, que possui personalidade e opiniões fortes e faz o que bem entende é muitas vezes tachada de louca histérica. Pode ser a reação que muitos têm ao ver Sally: "Aff que louca". A questão é que ela ta pouco se lixando que pensem isso e vai continuar sendo do jeito que é.


Sabe aquele ideal de mulher de verdade doce, recatada, imaculada? Sally sapateia em cima e diz "não preciso disso, meu amor". Todas somos de verdade, só pra ficar claro.

Então pra fechar esse post, vou deixar Sally cantando Cabaret. Aproveitem.


sexta-feira, 15 de maio de 2015

Livro 14: Auri, a anfitriã - de Aline Moura e Bárbara Almeida




(Se você está se perguntando como eu fui do livro 8 para o 14, a resposta está nesse post.

Se você nem percebeu, só continuar lendo como se nada tivesse acontecido)

Sinopse:
"Se eu fosse a dona desta casa, convidaria a entrar e tomar um café. A conversa, certamente, pode ser longa. Contudo, não tenho autoridade para tal convite. Isso está fora do meu alcance. Sou tão refém do sistema que tudo rege quanto às mulheres que em mim vivem. Eu, a própria prisão. E elas, minhas hóspedes. Prazer! Chamo-me Auri. Gosto quando dizem que eu sou a anfitriã. Estou aqui para convidá-lo a ler uma história. Na verdade, um cruzamento ininterrupto de histórias. Elas não são minhas, mas de minhas protegidas. Esqueça a má fama construída por meus antepassados. Quero que conheça meu labirinto através do que tenho a contar. Venho oferecer as memórias revividas por Maribel, Jéssica, Cinara e Patrícia, mulheres que, ao desvendarem os enigmas do passado, foram intensamente tocadas pelo cárcere. Entre, mas não sente. Vamos passear pelas vidas das pessoas que dão sentido a minha existência".


Sobre as autoras:
"A cearense Aline Moura é jornalista e escritora. Começou seus primeiros escritos literários ainda na adolescência, mas foi através do Jornalismo que encontrou seu desenvolvimento como escritora. Em 2010, licenciou-se em Letras pela Universidade Estadual do Ceará. Nos anos posteriores, trabalhou em comunicação governamental e jornalismo impresso. Em 2013, bacharelou-se em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Ceará, defendendo como Trabalho de Conclusão de Curso o livro-reportagem 'Auri, a anfitriã'.

Bárbara Almeida é jornalista, brasileira, cearense, graduada pela Universidade Federal do Ceará. Descobriu-se repórter ante o fascínio por conhecer e imaginar histórias. A começar pelas contações do pai. Achou-se na prosa e poética da memória popular, das lutas sociais e das artes. No jornalismo atuou em diversas áreas. fixando-se na narrativa escrita para jornais, agências e comunicação estratégica. Atualmente, mestranda em Comunicação e Artes pela Universidade Nova de Lisboa. Residente em Lisboa, Portugual".


Minha opinião:
(Pode ser que minha abstinência de Orange Is The New Black tenha contribuído pra eu gostar tanto desse livro? Pode. Mas quem é totalmente imparcial?)

Auri, a anfitriã foi um livro produzido via crowdfunding (financiamento coletivo). Eu descobri a campanha de financiamento após ler um texto no Lugar de Mulher e fiquei curiosa para ver a qualidade da edição de um livro publicado de forma independente através de financiamento coletivo. Um pouco preconceituoso da minha parte, admito. Mas posso dizer que esse livro em termos de edição não deixa nada a desejar aos das editoras.

Trata-se de um livro-reportagem (TCC das autoras) sobre o Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa, a Auri do título. Somos apresentados, pela própria penitenciária, a três histórias (sem contar a da anfitriã) de mulheres que, por diferentes razões, acabaram dentro dos muros da prisão. A narrativa é extremamente lírica e mistura narrativa com diversas reflexões acerca do sistema carcerário (em especial, o feminino) e sua eficiência. Fotos do instituto penal, algumas bem poéticas, ilustram as histórias.

Conhecemos as estrangeiras Maribel e Jéssica, a amante de livros Cinara e a ex-viciada em crack Patrícia. Cada uma com diferentes características, delitos e histórias. Todas presas em um sistema criado e regido por homens.

O interessante da narrativa é como ela nos aproxima das presidiárias e nos faz ver do ponto de vista delas. Até que ponto aquelas mulheres ali detidas não foram também vítimas? O quanto carregar a alcunha de ex-presidiárias vai impedi-las de construir um futuro diferente? 

Podemos pensar no Jean Valjean, do filme Os Miseráveis de 2012 (não li o livro do Victor Hugo, mals), vagando sem conseguir emprego ou um lugar pra ficar, tudo porque roubou um pão para o sobrinho não morrer de fome e agora é um preso em condicional. Acho um bom exemplo de como o sistema carcerário é ineficiente e, muitas vezes, injusto.

Outro exemplo, esse de uma mulher presa no sistema criado e regido por homens, seria Tracy Whitney de Se houver amanhã.

Além de toda essa discussão, Auri também ganhou diversos prêmios:
-melhor Livro-reportagem no Expocom Nordeste;
-melhor Edição de Livro no Expocom Nordeste; 
-melhor Livro-reportagem no Expocom Nacional; 
-melhor Edição de Livro no Expocom Nacional; 
-melhor Trabalho de Conclusão de Curso no prêmio de Gandhi de Comunicação.

Não tem indicação de outras resenhas, mas tem um booktrailer bem legal:


sexta-feira, 8 de maio de 2015

Maria Montessori - uma vida dedicada às crianças (parte 2)


Antes de continuar a saga de Maria, gostaria de dizer que encontrei o filme completo no Youtube com legenda em espanhol. Queria achar em português para colocar aqui, mas ainda não rolou. Então se você entende espanhol, fica aí o vídeo:



A última vez que vimos Maria, ela acabara de descobrir que (PLOT TWIST) Giuseppe Montesano, na verdade, é o professor de psiquiatria.

Interessada na matéria (e um pouco no professor), ela pede para frequentar as aulas desta matéria. Rola um discurso de "Ai, mas você é mulher. Vai fazer obstetrícia se quiser ter algum cliente quando se formar. Os caras não vão querer se consultar com uma psiquiatra mulher". Nada surpreendente, já sabemos que o professor Montesano é um babaca desde o diálogo da parte anterior.

lembram?

Maria responde: "O doente costuma ter menos preconceitos do que quem estudou".


Meio "Aff, vamo", o professor permite que ela frequente as aulas.

A primeira aula é em um manicômio. Eles vão a uma ala na qual ficam crianças, cujas famílias enviaram para lá querendo se livrar delas. O professor Montesano conta sobre seu projeto de tirar as crianças de lá para descobrir se elas possuem um retardo mental (Coloquei aqui o termo utilizado no filme, não sei se é o correto. Dei um google e encontrei artigos usando-o. Se for um termo que caiu em desuso ou carrega um preconceito, já peço desculpas) ou se agem como pessoas que possuem por influência do ambiente.

Um menino está amarrado na cama por ter mordido um servente. 


O professor manda soltá-lo. Solto, o menino foge e se esconde debaixo da cama. O enfermeiro que soltou fica todo "Eu disse, eu disse".

Maria vai até o menino e, com jeitinho, convence-o a ir embora com eles. Assim, conhecemos Luigi.

Luigi

Interessada no projeto, Maria pede para participar. Giuseppe nega com um argumento de "não temos dinheiro". Ela diz que não se interessa pelo dinheiro, mas pela experiência que pode adquirir. Ele responde: "Ouça, senhorita Montessori, o caminho da ciência é uma escalada. Exige estudo, trabalho, dedicação plena e uma mulher, mais cedo ou mais tarde, quer se casar e ter filhos".

O que aprendemos com Giuseppe nessa cena:
1) toda mulher quer casar;
2) toda mulher quer ter filhos;
3) casamento e filhos, no caso das mulheres, são incompatíveis com carreira.

Ainda bem que essa ideia de desqualificar o trabalho das mulheres porque elas engravidam ficou no século XIX... não, pera.

Maria ainda visita o local onde estão as crianças para ver Luigi. Rolam uns olhares "vamos deixar claro que somos o casal desse filme" entre ela e Giuseppe.


Em um belo dia de sol, Maria está estudando algo no laboratório quando surge Giuseppe. Ocorre o seguinte diálogo:

Giuseppe: "Não fui honesto com você"

Maria: "Foi sincero e isso já é bastante"

G: "Também não fui sincero. Você julga que não a aceitei por ser mulher"

M: "Não é verdade?"

G: "Sim, é verdade. Mas não pelo motivo que pensa"

M: "O que está dizendo?"

G: "Estou dizendo que para um homem é difícil trabalhar ao lado de uma mulher como você"

M: "Por favor..."

G: "Senhorita desculpe. É que quando estamos juntos..."

Resumindo: ele não aceitou Maria no projeto porque se sente atraído por ela. Ele também, pelo jeito, não consegue controlar os próprios desejos e separar profissional e pessoal. Autocontrole pra que, né? Tudo perfumaria.

Como bem disse a senhorita Montessori na parte anterior:


Os dois se beijam.


Não suspire ainda, pois (que surpresa) ele não quer que ninguém saiba que os dois estão envolvidos.

Enquanto isso, Maria passa a integrar a equipe do projeto com as crianças. Sua maior reclamação é que as crianças são tratadas como meros objetos de estudo e não como seres humanos. Ela afirma que o correto não é estudar as crianças, mas educá-las. Depois de muita treta, ela recebe permissão para trabalhar com um grupo de crianças separadamente a fim de provar suas impressões.

Logo no primeiro dia, Maria leva as crianças para brincar na chuva. 



Na mesma hora, um funcionário do Ministério da Educação está visitando o local para decidir se o projeto merece patrocínio do governo. Vendo a cena na chuva, ele fica "mas o que?". Professor Montesano fica "eita, e agora?". Maria explica que aquelas crianças nunca viram chuva e que precisam de espaço para brincar. O funcionário fica todo "Você nem formada é. Fica de boa aê".

Maria não desiste e continua utilizando métodos alternativos, como levar vários objetos aleatórios para mostrar para as crianças. Luigi demonstra interesse pelo caderno de Maria e pelas palavras escritas nele.



Na cena seguinte, Maria acaba de apresentar seu TCC (não sei se era TCC na época, mas vocês entenderam o espírito da coisa). O reitor faz um discurso elofensivo: "Quando entrou nesta universidade, eu mesmo era contrário à sua presença. Hoje, com este seu trabalho sobre doenças mentais, conseguiu mostrar a todos nós que estávamos enganados. Que até uma mulher pode ser uma estudante brilhante e de valor. Agora terá de continuar a nos surpreender. Terá de demonstrar que, por trás da válida estudiosa se encontra também uma boa médica psiquiatra. Srta. Maria Montessori, declaro-a doutora em Medicina e Cirurgia".

Depois disso, Maria e Giuseppe vão até a casa dele para comemorar (ou seja, fazem sexo). 

Rola um momento juras de amor, mas não suspire ainda. Agora vem o próximo PLOT TWIST que ninguém nem viu chegando: Maria descobre que está grávida!

Na próxima parte, veremos:
-Giuseppe sendo mais escroto do que nunca;
-Mãe do Giuseppe mostrando que a escrotice é de família;
-Mãe da Maria, que eu descobri que se chama Renilde, não sendo tão legal assim;
-Maria sendo aplaudida por muita gente (sem elofensas dessa vez) e mostrando que é diva.

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Maria Montessori - uma vida dedicada às crianças (parte 1)

Maria Montessori
Você já ouviu falar de Maria Montessori? Ela foi uma das primeiras mulheres a exercer medicina na Europa, desenvolveu um método pedagógico utilizado até hoje em várias partes do mundo e foi ativista pelos direitos das mulheres.

Aqui tem um documentário da BBC sobre ela:


Eu conheci essa mulher maravilhosa esses dias quando uma professora da faculdade passou um filme chamado Maria Montessori - uma vida dedicada às crianças. Eu queria ter um link do filme para colocar aqui, mas todos que eu encontrei foram retirados. Então a menos que você entenda italiano, não tem link para ver ou baixar. Só encontrei para comprar o DVD.


Como eu gostei muito do filme, decidi contar a história aqui. Fique bem claro que é a história do filme e que alguns fatos podem ter sido modificados na trama. Tentei ser sucinta na hora de escrever o post. Não rolou. Por isso, vou dividi-lo.

Dito isso, vamos lá:

(ainda vou arrumar uma divisão bonita para os posts)

Tudo começou em 1892 quando jovem Maria se matriculou na faculdade de medicina e foi lá sambar na cara da sociedade machista.

Jovem Maria, interpretada por Paola Cortellesi
No primeiro dia de aula, uzomi ficaram tudo: "Mano, cê acredita que ela tá matriculada de verdade no curso? (risos)"

Uzomi uzomando no primeiro dia de aula
Quando entrou na faculdade, Maria foi obrigada a sair e esperar o reitor do lado de fora do prédio. Somente quando todos já tinham entrando em suas respectivas classes, o reitor deixou que Maria entrasse e a conduziu até a sala. Isso fazendo o seguinte discurso: "Não quero confusão e não acho que esse seja o lugar para uma mulher, mas fui obrigado a te aceitar porque você tem boas notas. Então você tem que esperar todos sentarem antes de entrar para evitar ao máximo o contato com seus colegas".

(Em um filme que se passa no século XIX, não me surpreende o reitor dizer para a aluna evitar o contato com os colegas ao invés de dizer para eles respeitarem a colega. O que me surpreende é casos assim acontecerem até hoje.)

Maria olha ironicamente para ele diz: "Já estou aqui há 10 minutos, Creio que, por hoje, conseguimos salvar a honra da faculdade", e entra divosa na sala.

Uzomi voltam a uzomar quando a veem entrando, mas ela ergue a cabela e anda até seu lugar.


Aula de anatomia. Professor pergunta: "Quem quer fazer a primeira incisão [no cadáver de uma mulher morta]?". Todo mundo fica "eu que não". Maria manda um:


Vai lá, faz a incisão e ganha um muito bem do professor.


Maria chega em casa querendo desistir do curso e tem uma conversa com a mãe que eu curti tanto que vou até trancresver.

Maria: "Hoje, vi-me frente ao corpo de uma mulher. Gostaria de tê-la defendido dos olhares e dos comentários de meus colegas. Ter gritado que ali havia uma pessoa, ainda que morta. Em vez disso, tive que abri-la, de seccioná-la, de tratá-la como um saco vazio. Só para mostrar aos outros que não tinha medo. Por que, quando se trata de ciência, nós, mulheres, temos sempre de demonstrar que estamos à altura?"

Mãe: "Porque a ciência, até agora, tem sido dos homens".

Maria: "Estou cansada de estar sozinha. Sozinha contra todos".

Mãe: "Mas se parar no primeiro obstáculo, dará razão aos que nos julgam seres inferiores que só sabem dar à luz. Quando for médica, o que não pôde fazer hoje por essa mulher, poderá fazer pelos filhos, pelos netos dela".

Maria: "Eu não sei se chegarei a ser médica, mamãe. Odeio o sangue e o cheiro da morte".

Mãe: "Todos odeiam! Até os homens. Embora eles tenham aprendido a não demonstrar".


Depois dessa conversa, Maria decide que vai se esforçar e se tornar médica.  Ela tem a ideia de pedir para que alguém fume ao seu lado quando estiver mexendo em algum cadáver para disfarçar o cheiro. Assim, conhece Giuseppe Montesano. 

Giuseppe Montesano, interpretado por Massimo Poggio

 Como sabemos que ele é um babaca?


Sério. Quando eu vi o diálogo e essa fala, pensei "Aff, babaca".

Vou transcrever o diálogo para que vocês possam ver que ele é babaca e ver como a Maria o responde divamente. 

Para entender a cena: ela está dissecando um cadáver e ele está fumando em cima.

Maria: "Você estuda o quê?"

Giuseppe: "Psiquiatria"

M: "Interessante"

G: "Muito. Mas não aconselharia seu estudo a uma mulher" 

M: "Por quê?"

G: "Porque é um disciplina muito dura"

M: "Então, fico surpresa que haja homens lá. Em geral, todas as coisas mais duras da vida do parto à educação dos filhos, são reservadas às mulheres"

G: "Não me diga que é um feminista...!"

M: "Sabe do que morreu esta mulher? De sífilis. E sabe por que não foi curada? Porque era casada e o marido, de acordo com o médico, decidiu não lhe dizer. Não queria que ela soubesse que passava noites em bordéis"

G: "Poderiam, ao menos, tê-la curado..."

M: "Não! Vendo os remédios, ela entenderia. Neste mundo, o capricho de um homem  vale mais que a vida de uma mulher"



Na cena seguinte, Maria está na sala de aula esperando o professor chegar. Giuseppe entra na sala e:

PLOT TWIST!

Ele, na verdade, é o professor de psiquiatria! Uau, nem vi isso chegando.

Vou parar por aqui. Segurem os corações porque ainda falta comprovar que professor Montesano é um homenzinho de merda e descobrir que a mãe da Maria não é tão legal assim.

(Acho ótimo que isso só foi onze minutos do filme. Preciso ser mais sucinta)